May 8, 2020

Carta #1 - Virando dono de shopping em 2009 (a primeira vez é inesquecível!)

Por Felipe Guarnieri

Estamos em 2009, o iPhone existe há apenas 2 anos, ter um canal no YouTube e viver disso parece ser algo tão difícil que é mais fácil ir atrás de uma concessão de afiliado da Rede Globo e o negócio de casas de análise ainda não existe. Fundos de investimentos imobiliários (FIIs) existem há menos de 15 anos, ou na prática há cerca de 10 anos quando no IPO eram vendidos por corretores de imóveis num mercado ainda tentando entender se os FIIs eram pedaços de escrituras de imóveis, ou títulos financeiros (para efeitos práticos são os dois, tal qual a luz ora possui propriedades de onda, ora de partícula). À época eu já investia no mercado de ações desde 1997, gostava de imóveis e sabia da existência dos FIIs, mas nunca havia investido em um deles... ...não até então! A hora era chegada.

Lembrando! O que fazer quando ainda não há casas de análise enviando e-mails marketing de relatórios, e nem canais de Finanças Pessoais no YouTube mostrando o ‘caminho das pedras’, sem nenhuma corretora preocupada em elaborar relatórios minimamente decentes sobre o tema, que era visto quase como uma curiosidade dentro do mercado financeiro? O que você faz? A-) Desiste? B-) Faz sua própria pesquisa? Escolhi a alternativa “B” não sem antes jurar ter ouvido Drummond me dizer “vai, Felipe! ser gauche na vida”. Estou exagerando, a bem da verdade tendo me graduado em administração de empresas pela FGV-EAESP, tradicional escola de negócios com excelência em finanças e investimentos; sendo investidor desde 1997 (ninguém precisa saber, mas os R$ 100,00 aplicados à época no fundo Real Mais, depois de horas de análise da carteira do fundo junto a paciente gerente do PAB que ficava dentro da Escola, me forjaram mais como investidor do que qualquer outro evento) e na época sócio de uma empresa de investimentos que geria uma carteira considerável (esta carteira foi incorporada ao FIA Dimona da GTInvest e está lá até hoje...); não era um bicho de 7 cabeças tomar esta decisão, ainda que o trabalho fosse imensamente mais complicado àquela época do que é hoje.

Comecei pelo começo, eu sabia que existia um fundo imobiliário que tinha parte do Shopping Higienópolis; é sempre bom começar por algo que você conhece, para ter a comparação necessária e entender o contexto, servindo de ponte de transição entre algo desconhecido a algo familiar. O shopping fica no bairro de mesmo nome em São Paulo, cidade em que moro desde 1995. Acompanhei sua construção no final dos anos 1990; um professor de geografia de mercado na faculdade tinha o escritório lá no bairro e tendo escrito uma dissertação sobre shoppings centers no Brasil, adorava citar o exemplo. Àquela época a população do bairro era majoritariamente contra (“vai ter trânsito”, “vai acabar com o sossego”, “vai trazer muita gente de fora”...); curiosamente foram justamente pessoas do bairro os primeiros compradores do FII quando ele veio a mercado e muitos permanecem até hoje sem nem cogitar vender o papel, algo que só fui descobrir beeem depois conversando com um officer de uma conhecida asset. Ter tido uma namorada no bairro também ajudou (não é mais minha namorada, mas porque nos casamos!), afinal era justamente naquele shopping que íamos ao cinema nas noites de sexta-feira depois de um rápido jantar ali no La Villete da Praça Villaboim. A primeira lição é esta, as pessoas (e os investidores) são muito ruins em analisar situações desconhecidas a priori e atribuir um julgamento (bom ou ruim; serve não serve etc).

Tendo este bom ponto de partida, fui ao site da Bolsa de Valores de São Paulo (me esqueci de dizer no começo, mas a B3 também não existia). A navegação no site era quase tão ruim como é hoje, mas como fonte oficial de informações me parecia o caminho mais óbvio, afinal, tudo o que não estivesse ali era ou opinião, ou insider information. Navega, navega, navega, clica, clica, navega e eis que surge um relatório. Uma demonstração financeira padronizada, quase indecifrável mesmo para quem tem um bom conhecimento de finanças e contabilidade. Olho outras demonstrações de meses anteriores, busco entender qual o valor de um shopping, faço um modelo no Excel e concluo que àquele preço; o fundo está caro... tinha caído muito na crise, mas em tendo recuperado o valor não dá para entrar. Paciência, muita gente ao analisar uma oportunidade de investimento busca o viés confirmatório – o que é ótimo se você é um empreendedor que pode atuar de forma a mudar os rumos do seu negócio – mas nem sempre é bom se você está comprando um ativo financeiro sobre o qual exerce poder de maneira muito diluída, débil ou indireta. Além de conhecer o ativo, seu histórico e ter feito algumas contas; pouquíssima informação estruturada havia disponível...

Mais ou menos na mesma época me chega às mãos um prospecto de um IPO de um FII de outro shopping center, um tal Shopping Parque Dom Pedro localizado em Campinas. Aí sim tínhamos ótimas informações estruturadas no prospecto e bons modelos financeiros já existentes nas pouco mais de 400 páginas do prospecto; mas faltava-me o conhecimento tácito do negócio, da cidade, afinal eu morava em São Paulo, não tinha nenhum professor de Geografia de Mercado que conhecesse a cidade e – claro – também não tinha nenhuma namorada em Campinas. Vi quem eram os donos do shopping, analisei o caso no detalhe, fiz meu próprio modelo financeiro simplificado. Entrei no Google Earth (sou usuário desde quando ainda se chamava Key Hole) vi o terreno e o ótimo entroncamento rodoviário no qual ele estava. Da área adicional para locação que estava sendo construída e já fazia parte da oferta. Entendi a regra da “garantia mínima” (mesmo que o negócio explodisse, haveria um pagamento de rendimento mínimo mensal aos quotistas, a prática é questionável, mas naquele momento dava um maior conforto à uma decisão positiva; curiosamente este foi um dos poucos casos positivos da aplicação da renda mínima por um FII)... e olha, apesar do preço não ser aquela certeza de ganho rápido; ele estava “Ok”; tendo recém me debruçado sobre o caso do Shopping Higienópolis; me pareceu um preço muito mais justo pedido pelos vendedores do Dom Pedro do que o preço a mercado do Higienópolis. Mas faltava-me ainda o conhecimento empírico, o conhecimento das ruas.... Até que cheguei a um impasse; o prospecto estava lá, o ativo parecia bom, a conta fazia sentido, havia um “seguro” de rendimento mínimo, mas e aí? Na hora decisiva você está sozinho para tomar a decisão, isto é bom pois te obriga a ser mais diligente, mas ruim porque não há com quem discutir diferentes pontos de vista (até hoje o melhor método para mim é conversar com o mercado e tomar suas próprias decisões).

Dado o impasse, não tive dúvidas, eu precisava conhecer o ativo, sentir como era o shopping, ir até lá, fazer campo, conversar com lojistas, interagir com os clientes do local. Num sábado à tarde saímos em família pouco antes do almoço em direção à Campinas. Íamos com objetivos diferentes! Pela primeira vez eu ia visitar um shopping com o objetivo de decidir se me tornaria ou não dono de parte dele, mas para quem estava comigo era mais um passeio divertido num sábado à tarde. Chegando lá, acionei o modo analista de research, ou (field operations se você gosta de filmes de espionagem); pausa na entrada do estacionamento para ver o preço por hora, dei uma longa e intencional volta no estacionamento reparando nas placa dos carros – hábito que mantenho até hoje quando visito um shopping – Campinas, Campinas, Campinas, Jundiaí, Americana, Campinas, Americana, Bragança, Indaiatuba, Campinas, Campinas, Campinas, Vinhedo, etc. Ficou claro logo de cara que para entender bem este shopping, não era apenas entender Campinas, mas sim todo a região na qual ele estava inserido. Tendo crescido em Taubaté e durante vários finais de semana ido pela Dutra ao Center Vale Shopping, mesmo após a inauguração do Taubaté Shopping Center, me ajudava a ter uma visão mais completa da dinâmica da geografia da região (sem contar é claro todo o conceito aprendido nas aulas de Geografia de Mercado de isócronas, zonas de influência e a Teoria do Lugar Central do Cristaller). Carro estacionado, continuamos a pé em direção à porta principal. Campinas, Campinas, Campinas, Indaiatuba, Jundiaí.... a observação continuava, era no automático! Era maior do que eu! Muito tempo depois conversando com um diretor de shopping, contei a ele sobre isto como método inicial para avaliar um shopping, ele me disse que embora tivessem as câmeras da entrada do shopping com reconhecimento óptico de caracteres ligadas diretamente no banco de dados da polícia, ainda usavam pesquisas para averiguar de onde vinham as pessoas; depois da conversa ele ia verificar se dava para “automatizar a pesquisa”.

Logo de cara o shopping impressionava, imponente, grandioso, corredores cheios. No atrium principal onde a um lance de escadas está a praça de alimentação, uma visão impressionante; uma praça enorme e cheia de gente, filas nos restaurantes, casais de namorados, famílias grupos de amigos. Alguns (na verdade vários já que o shopping é grande) passos e começo a entender a dinâmica setorizada do ativo; desde o início eles procuraram concentrar o mix de lojas similares em determinados corredores. Anda, anda, anda, entra numa loja, sai da loja, observa clientes com sacola, sem sacola, com sacola, com sacola, sem sacola. Entro numa loja e compro um item para a cozinha de casa. Loja boa, vendedoras atenciosas, perto do caixa um sujeito mais velho de bigode parece orientar a menina que estava operando o computador; vou pagar e puxo conversa com ele. Me explica um pouco da loja, faço perguntas sobre a dinâmica do shopping, que dia tem mais gente, qual o melhor horário, como são as promoções, se o cinema é bom, se ele almoça e janta lá até que entro nos detalhes do relacionamento dele com a gestora do shopping. E eis que surge uma frase que me é quase uma epifania “aqui é bom, mas negociar com estes sujeitos é difícil! Se você ler o contrato, não assina”; pronto, parece que depois de tudo foi o estalo que eu precisava para tomar a decisão. Um gestor “duro” do ponto de vista do lojista é um gestor “bom” do ponto de vista do dono do shopping, coisa que eu queria me tornar. Não tenho dados para provar, mas tendo acompanhado como consumidor e investidor a dinâmica de shoppings, tendo a crer que alguns gestores de shopping devem ter inclusive praticado preços acima do preço de equilíbrio em shoppings dominantes ou monopolistas em seus municípios. Explico, se o preço de equilíbrio do aluguel fosse $ 100, o sujeito cobrava $ 110; talvez metade dos lojistas apertavam os custos, se mexiam para vender mais e a conta fechava, talvez metade não aguentasse e depois de um ano entregasse o ponto; mas aí tinha outro sujeito na fila querendo pagar os mesmos $ 110 ou quiçá $ 115. Esta inferência é válida para shoppings que possuem vacância zero, mas com mix de lojistas dinâmico, ou seja, que toda hora tem alguém saindo e alguém entrando. Eu não sabia se era o caso de Campinas, pois estava vendo uma fotografia e não um filme...

Bem, depois de um sábado trabalhando não tive dúvidas: ao voltar a São Paulo, entrei no site da corretora e reservei as minhas quotas; minha experiência para (um dia quem sabe) me tornar um “Barão Imobiliário” estava começando...

Por último um rápido post scriptum. Ali perto de uma das saídas onde há um ótimo empório com produtos deliciosos, havia um quase que desapercebido quiosque, mas não era um quiosque qualquer vendendo bolos, almofadas ou sorvetes. Ele vendia o próprio shopping. Numa brilhante e louvável iniciativa os vendedores montaram um quiosque dentro do ativo para apresentar a venda do próprio ativo. Havia duas meninas conversando entre si e abordei uma delas. Me explicaram corretamente o que eu tinha que fazer para comprar um pedaço do shopping. Olho ao redor e parece que elas são invisíveis, além de mim ninguém mais as aborda. Seguramente algumas dezenas de milhares de pessoas passaram por lá naquele mês, mas poucos, muito poucos devem ter conversado com elas. Menos gente ainda deve ter tomado uma decisão de investimento depois disto. Naquele mês eu me tornei um dos 5.000 brasileiros que investiam em fundo imobiliário, hoje já somos (abril de 2020) 792.229. Ainda é pouco, muito pouco.

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Felipe Guarnieri investe em FIIs desde 2009. É administrador de empresas pela FGV-EAESP, trabalha como consultor de estratégia empresarial na Zheta Planejamento, é membro do GRIFI e membro do comitê de quotistas do BCFund desde 2015, o maior fundo de lajes corporativas do Brasil. E agora, também escreve artigos divertidos e educativos para a Ohr. Aproveite!


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